domingo, 20 de setembro de 2009

NÓS SOMOS A NOSSA MEMÓRIA...


De Profundis, Valsa Lenta de José Cardoso Pires



Podemos inserir o De Profundis, Valsa Lenta de José Cardoso Pires no âmbito da literatura autobiográfica. Esta obra, todavia, não se apresenta como um diário ou como um rol de memórias. É antes uma busca da memória que o sujeito da enunciação perdera devido a um coágulo de sangue no cérebro, ou se, quisermos, uma crise vascular cerebral. O autor, numa nota final, chama ao relato Memória duma Desmemória. É, diz ele, «uma comunicação de circunstância. Um apontamento pessoal.» Insere-se na literatura autobiográfica porque o autor conta algo que se passou com ele próprio. É uma experiência de foro pessoal onde as personagens que contracenam realmente existiram num espaço e num tempo reais.

O autor faz a apologia da memória: «Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto.» A memória «é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido.»; «Se o sonho é já por si uma memória, sem memória poderá o indivíduo sonhar?»

A focalização do narrador varia. Ora fala um eu que conta a sua própria experiência, ora fala um eu que conta a experiência de um outro. O eu é o outro, aquele que perdera o rumo dos seres e das coisas («Ele, o Outro. O Outro de mim.»).

Numa manhã de Janeiro, enquanto fumava um cigarro à mesa do pequeno-almoço, o eu tinha-se esquecido de quem era. A esposa, sobressaltada, chamou a ambulância enquanto ele, na casa-de-banho, diante do espelho, desfazia a barba a um desconhecido. O enunciador constatou o vazio da memória, «a morte branca», como sucedera aliás à visão de uma das personagens do Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago logo no início do romance.

João Lobo Antunes, neurocirurgão, explica na introdução à obra o mecanismo clínico que terá levado à crise e à sua consequente superação. Regra geral, os doentes que sofrem uma crise do género ficam com mazelas para o resto da vida, desde disfunções nos órgãos externos (face, mãos e pés) até à perda da visão, da fala e da memória. José Cardoso Pires conseguiu recuperar. E isto porque a área que temporariamente «deixou à sede e à fome, e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímio, era mais musculada que a do comum dos mortais.»


Uma obra a ler e a reler...


CC

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